Pedro Lima

Trabalho Selecionado

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2021, Solo e Solo & Eletrónica

“(eu diria que nevava)”

A poesia, no seu sentido mais lato, é por norma um princípio integrante e essencial no decorrer do meu processo criativo. Muito antes de materializar a ideia na música propriamente dita, procuro fazer uma espécie de mediação através das palavras. O poder evocativo de um poema é uma força ímpar capaz de suscitar uma vontade singular para metaforizar o verbo através do som.

A música que escrevi, nos contornos abstratos que a definem, não procura descrever as palavras que Maria Afonso escreveu. Procurará, porventura, canalizar um certo espectro emocional que me contagiou desde o primeiro momento em que li alguns poemas do seu livro (eu diria que nevava).

Ideias de contradição, de distância, de solidão, de vazio, de formas bucólicas que cantam o vulgar e o sagrado.

Fascinou-me em particular esta capacidade descritiva de um ambiente frio e simultaneamente contraditório onde os sentidos são constantemente conduzidos por ideias poéticas que contradizem tudo aquilo o que parecem dizer.

Neste léxico tão peculiar e tão ajustado ao tempo que o presente nos faz sentir, há um convite para entrar num flirt com um conceito tão poético e tão incerto : (eu diria que nevava). Uma afirmação repleta de dúvida que quando escrita entre parênteses parece ganhar um misticismo simbólico, ténue mas reivindicativo.

O saxofone nas mãos do Luís Salomé é o pincel que arrasta este ambiente sonoro onde o ar e a fragilidade de notas muito agudas surgidas no longínquo se fundem num discurso sempre místico que se contradiz por entre ideias ora vagas, ora concretas que parecem falar “(…) de um outro mundo sem areias” e ao mesmo tempo gritar “(…) as palavras que os ecos do oceano esqueceram pelo caminho…”

(Pedro Lima, 2023)

 

dir-se-ia que nevava esta manhã

raros flocos secos caíam aqui e ali

tudo se contradizia - as rosas maduras e as romãs adolescentes

um lodo espesso no lago e vestígios de relva seca esmagada no passadiço

pessoas corriam ofegantes no sentido inverso do meu lento caminhar

o cão a lamber-me as pernas e a dizer bom dia

algumas flores brancas

e um calor bafiento como se incinerassem pessoas ou ateassem árvores secas 

(eu diria que nevava)”

 

aqui as pedras falam de um outro mundo sem areias

nem flor de sal

dizem trigo e papoilas

aqui o céu fica mais perto e respira-se um azul

feito de terras, uvas e chuva fria

daqui também se gritam as palavras

que os ecos do oceano esqueceram

pelo caminho

[Maria Afonso, (eu diria que nevava), ed. Canal Sonora, Tavira, 2016]

Detalhes

Saxofone Soprano com reverb

 

Encomenda: Luís Salomé e Município da Guarda

 

Compositor: Pedro Lima

Estreia: 23 de julho 2021, Biblioteca Municipal da Guarda
Poema: Maria Afonso
Duração: 14 minutos
Instrumentação: Saxofone soprano (com reverb artificial ou natural)